Ana Cristina's profile

Reportagem: Trans(cender)

REPORTAGEM
Reportagem produzida para a Revista Autêntica, seu conteúdo possui linha do tempo e dicas de entretenimento. Disponível para consulta.
TRANS(CENDER)


Bate papo com Wallie Ruy 

Nascida e criada na cidade de Bebedouro no interior de São Paulo, a atriz Wallie Ruy, 34, é o que a sociedade nomeia como mulher transgênero: pessoa do gênero feminino, mas que foi biologicamente designada como pertencente ao masculino em seu nascimento.  

Sua emancipação familiar e financeira aconteceu quando a atriz, ainda adolescente, saiu de sua cidade natal para estudar Artes em Ouro Preto, Minas Gerais. E foi nesse momento que o processo de afirmação e liberdade de se expressar da maneira que se entendia ficou evidente. Em contradição com o que acontece a maior parte de pessoas trans, Wallie sempre teve o apoio de sua mãe e posteriormente de familiares - o que foi importante para uma construção mais saúdavel para a atriz. 

Atualmente, apoia o uso do termo transvestigenere, pois segundo ela é uma maneira de agrupar todas as formas de versões de gênero: trans para pessoas transexuais, vestir para travestis e generes de pessoas transgêneros (ou qualquer um que não seja representado em uma questão política). 

Explicando de forma mais ampla, o termo é um neologismo que nasceu no movimento trans em 1996 pela ativista e militante Indiara Siqueira, na quarta Conferência Municipal de Saúde de Santos. A partir de então, passou a ser usados por pessoas que se afirmavam na causa.  Em São Paulo, foi utilizado pela deputada Erika Hilton, também uma mulher transvestigenere.  

No entanto, é importante destacar que nos anos de 1960 e 70 a nomenclatura mais utilizada era a de transformismo: homens que se vestiam de mulheres para fazer show. Esse termo era carregado de estigmas e exotificação do corpo transexual. Ser travestir naquela época era ser rotulado a doenças, prostituição e em sua maior parte, a pessoas negras trans que viviam na periferia. 

Foi somente após diversas lutas do movimento trans contra a repressão e discriminação que o termo Travesti foi utilizado como símbolo de representatividade e luta para derrubar a visão pejorativa e racista que a ele era aplicado. Nos dias atuais, há um grande peso sócio cultural e empoderado, sendo utilizado por grande parte da comunidade em sinal de resistência. 


BOX: termos
Transvestigenere: junção dos termos transexuais, travestis e transgêneros. 
Transexual: termo genérico que caracteriza as pessoas que não se identificam com o gênero que lhe foi atribuido ao nascimento.
Transgênero: conceito que abrange o grupo de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado no nascimento.
Travesti: uma construção de identidade de gênero feminina e latinoamericana. A travesti foi designada homem ao naser, mas se reconhce em uma identidade feminina. O termo foi, por muito tempo, utilizado de forma pejorátiva, mas tem sido resignificado pela comunidade LGBTQI+.
Cisgênero: indivíduos que se identificam, em todos os aspectos, com o gênero atribuiído  em função do seu sexo biológico


A importância do amor e afeto na afirmação de uma pessoa transexual

Lar, segundo o significado do poeta João Daedelein, é um local de aconchego, um porto seguro, um lugar de segurança e proteção. Geralmente entendemos como lar o local que dividimos com nossos familiares ou amigos, pois é onde nos sentimos seguros e tranquilos. Todo ser humano necessita de afeto e amor para uma construção feliz e protegida. E com as pessoas transvestigeneres não é diferente.   
   
De acordo com a psicóloga Ingrid Quintão, em entrevista para o Correio Braziliense, quando uma pessoa trans se afirma para a família e/ou amigos pode gerar sentimentos de traição, medo e luto por estarem ancoradas em preconceitos ou ideias estereotipadas pela sociedade em que vivemos. No entanto, se existe uma solução para esse processo, é por meio de afeto e diálogo.   

Uma pessoa em processo e afirmação pode desenvolver diversos sentimentos, o que pode gerar uma confusão sentimental e finalmente uma sensação de liberdade. Durante isso, tudo que ela menos precisa é de apontamentos negativos sobre ser quem realmente é.  De acordo com a entrevista para o M de Mulher do psicólogo e homem trans, Victor Namur, ainda há casos em que a primeira reação das pessoas é associar a não conformidade com o gênero de nascimento a uma doença mental. Mas vale a ressalva sobre a classificação da OMS que você verá no próximo texto, a qual transexualidade não é uma doença.   
Wallie Ruy afirma que acolhimento familiar dá uma base de segurança para ter coragem de seguir.


BOX: e as cirurgias? 
De acordo com o jornal britânico The Lancer, estima-se que existam entre 725 mil a 2,4 milhões de pessoas transexuais no Brasil. 
Em relação à cirurgia de redesignação sexual (mudança de sexo), mastectomia (retirada da mama) e histerectomia (retirada do útero), foram realizados 9.867 procedimentos pelo SUS entre 2008 a 2014. Tendo em vista a quantidade de transexuais no país, esse número é baixo. 
Isso se dá pela falta de informação e discriminação por profissionais da saúde e o alto custo de um procedimento particular, o que leva muitos a buscarem as opções clandestinas.
Denuncie: 100 - Disque Direitos Humanos


Uma visão negativa mas necessária sobre a comunidade Trans no Brasil

Durante 28 anos, o termo ''transexualidade'' era denominado como um transtorno psiquiátrico pela Organização Mundial da Saúde. Foi somente em junho de 2018 que passou para a lista de condições de saúde sexual, se tornando uma vitória para a comunidade transvestigenere. Apesar disso, segundo pesquisa realizada em novembro de 2016 pela ONG Europeia, o Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans, somando mais de 868 mortes entre os anos de 2008 e 2016.

Mesmo sendo estabelecido em 2019 pelo Supremo Tribunal Federal que praticar, induzir, ou incitar a discriminação ou preconceito em razão da orientação sexual de qualquer pessoa é crime, basta olhar os dados de mortes de pessoas transexuais para entender que o país ainda é discriminatório. 
   
Wallie afirma que o medo de ser mais uma na contagem de mortes é constante e eminente, porque apesar da luta, os corpos de pessoas trans ainda não são bem vistos na sociedade. Dados da União Nacional LGBT apontam que o tempo médio de vida de uma pessoa transvestigenere no Brasil é de apenas 35 anos. 
   
Ao longo de sua história, nossa entrevistada pode contar com o apoio familiar, direitos básicos como a educação e oportunidade de trabalhar na área que sempre desejou. No entanto, a atriz entende que ser branca e ter tido a possibilidade de acesso aos direitos que todo cidadão deveria ter, é um privilégio. 
    
A atriz afirma que é importante reconhecer os privilégios e abrir mão deles quando for necessário e, apesar de ser menos difícil pra ela agora, não pode afirmar que está tudo certo na população brasileira. 
   
''Foi difícil pra mim? Foi. É menos agora? Sim. Mas enquanto as minhas não estiverem ocupando o mesmo espaço, eu vejo com os olhos de que a dificuldade ainda existe, se não até mais. Olho pro lado e vejo as mana se prostituindo porque não são aceitas no mercado de trabalho'', complementa a atriz. 
   
Tendo em vista a realidade de pessoas trans na atualidade, são poucas as oportunidades de trabalho no mercado formal. Poucas das que conseguem, utilizam da passabilidade e de acesso a direitos básicos como a educação, apoio familiar e afins. No meio político, o índice de transvestigeneres ocupando cargos políticos é menor se comparado a porcentagem de pessoas heteronormativas eleitas e candidatadas. 
   
''90% da minha população ainda se prostitui de maneira compulsória. Não ocupamos o mercado de trabalho formal. As famílias ainda espancam, expulsam ou matam seus filhos e filhas'', afirma a atriz ao ser questionada sobre as oportunidades de emprego. 
   
Sobre o apoio governamental referente a luta trans, a entrevistada compara o governo atual a operação tarântula - que foi uma caça a travestis no Brasil durante os anos 1970 e 1980 - e complementa com as classificações de genocida, antigoverno e fascista. Declarando que a luta trans sempre existiu, porém hoje a violência está sendo legitimada contra a comunidade transvestigenere. 
 
Por fim, para Wallie uma das melhores maneiras de ir contra a discriminação é oportunidade de ter acesso aquilo que é mais básico: o amor e o afeto - porque enquanto essas pessoas não tiverem acesso a isso, nada mais importa.​​​​​​​
Por Ana Cristina e Ricardo Oliveira.
Reportagem: Trans(cender)
Published:

Owner

Reportagem: Trans(cender)

Reportagem sobre transexualidade. Contém entrevista com a atriz trans Wallie Ruy.

Published:

Creative Fields